Opinião: Futebol faz de conta...

Artigo de opinião de Paulo Martins no Jornal de Notícias

Futebol faz de conta
Faz de conta que foi penalti. Faz de conta que chamar ladrão a um árbitro é um declaração de amor. Faz de conta que o Sporting não saiu da Direcção da Liga dos Clubes. Faz de conta que pequenas asneiras e grandes subornos se apagam com a profissionalização do ofício do apito. Faz de conta que alguém se leva a sério, quando se arma em virgem púdica ou em Tarzan. É assim o nosso futebol: um mundo de faz de conta. António Aleixo, se fosse vivo, substituiria a palavra poeta pela palavra futebol, na sua célebre quadra: "O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente".
No mundo real, um penalti incorrectamente assinalado seria considerado fraude, legalmente punível, caso ficasse provada. No mundo da bola, sendo nódoa de suspeição, torna-se apenas pretexto para gritarias cruzadas e declarações inflamadas, que perdem fôlego se na jornada seguinte a maldição se abater sobre outro clube.
No mundo real, acusar alguém de roubo seria difamação, com direito a processo judicial. No mundo da bola, é tão grave como chamar azelha ao avançado que falha um golo de baliza aberta. No mundo real, a Direcção da Liga sem representação dos principais clubes tomaria a iniciativa de convocar novas eleições, desafiando quem causou a situação a dar a cara por uma alternativa. No mundo da bola, só se aceitam chicotadas psicológicas nas costas de treinadores, não de dirigentes. Qual "inversão de paradigma", qual quê, senhor Hermínio Loureiro! Continua tudo exactamente na mesma.
No mundo real, saber se o emprego se conserva para lá do fim do mês é o que, por estes dias, ocupa as cabeças. Nada melhor, portanto, do que desviarmos o olhar para o futebol. Discutir, como se disso dependesse o futuro da Humanidade, se a bola entrou mesmo na baliza, se o toque dado pelo defesa dentro da área foi suficientemente intenso para o mergulho do avançado, se o meu clube foi esta época mais roubado do que os outros (para não desgastar em excesso o cérebro do leitor, faço o meu registo de interesses: sou adepto do Sporting; simples adepto, não sócio).
Crise não é palavra que entre no léxico do futebol, um dos mais formidáveis instrumentos de fuga à realidade até hoje inventado. Dos três F do tempo do salazarismo é o que sobrevive mais pujante. O fado, rejuvenescido de vozes e de espírito, deu para este peditório o que tinha a dar. E Fátima já não é só para consumo interno.
A mais apressada conclusão seria que ao futebol nacional, de faz de conta, ninguém confere um pingo de credibilidade. Puro engano. A avaliar por um estudo cujos contornos o JN revelou na edição de ontem, as marcas que patrocinam o futebol não têm razões de queixa. Quanto mais "bernardas", melhor.

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