Entrevista: Carlos Simon - "Somos os pobres da bola"


“Opa, muito bacana e fico muito feliz em saber que essa entrevista também será lida pelo povo russo, um povo de luta e tantas lições sociais prestadas à humanidade”, despejou, visivelmente envaidecido, o ex-árbitro da FIFA Carlos Eugênio Simon, hoje um homem realizado profissionalmente. Nem poderia ser diferente. Nos 27 anos em que se dedicou à arbitragem de futebol, ele conquistou as maiores glórias possíveis na profissão: integrou o quadro FIFA, apitou inúmeros jogos, inclusive finais de competições regionais, nacionais e internacionais e, galardão maior, trabalhou nas Copas do Mundo de 2002, 2006 e 2010 – feito raro no futebol mundial e inédito entre arbitragem brasileira. Nascido no município de Braga (RS) no dia 3 de setembro de 1965, Simon formou-se jornalista pela PUC-RS em 1991 e é Pós-Graduado em Ciência do Esporte com especialização em Futebol. É casado e pai de quatro filhos. Para especial satisfação dos árbitros gaúchos, foi presidente do Sindicato dos Árbitros de Futebol do Rio Grande do Sul – SAFERGS – de 2006 a 2009, realizando uma administração dinâmica e inovadora, especialmente no âmbito da comunicação. Por ter atingindo a idade limite de 45 anos abandonou o apito em 2010, depois de receber uma aclamação consagradora dos torcedores presentes no estádio do Engenhão, na final do Campeonato Brasileiro entre Fluminense e Guarani. Afastado dos gramados recebeu dois convites de trabalho, prontamente aceitos. O primeiro foi para ser Instrutor de Árbitros da FIFA e o segundo, por parte do Governo do Rio Grande do Sul, para ser o Coordenador Executivo do Comitê Gestor da Copa do Mundo no RS. Nesta entrevista exclusiva concedida aos jornalistas José Edi e Moah Sousa para o jornal Marca da Cal, órgão oficial do SAFERGS, ele fala sobre a carreira recém encerrada, as ideias acerca do futuro da arbitragem de futebol e os novos desafios que tem pela frente. O encontro aconteceu na tarde do dia 3 de junho, no gabinete de Simon no prédio do Centro Administrativo do Estado, em Porto Alegre.

Como estás te sentindo como um árbitro aposentado?
Tem sido difícil. Apitei 27 anos e 27 anos não são 27 dias ou 27 meses. Tenho até evitado ver jogos pela televisão, por que bate aquela saudade, aquela vontade de estar dentro de campo. Mais recentemente trabalhei como observador de arbitragem e passei rapidamente nos vestiários, vi o pessoal se preparando para o jogo. Dá saudade. Eu me preparei para sair. Todo o árbitro de futebol que começa, sabe a idade com que vai encerrar a carreira. Quando eu comecei, a idade para sair era 50 anos. Hoje é 45, amanhã pode ser 42. Mas, enfim, existe uma idade limite a partir da qual o árbitro não pode mais apitar. Há pouco tempo recebi um e-mail do presidente da Comissão Nacional de Arbitragem (Nota da redação: Sérgio Corrêa), informando que a minha média nos 26 jogos que participei no Campeonato Brasileiro de 2010 foi 9.5, de acordo com a avaliação dos observadores da CBF. Foi um ótimo resultado. Considero que encerrei a carreira de forma extraordinária. Além da Copa do Mundo, apitei três finais de campeonato – Supercopa (Estudiantes X LDU), Copa do Brasil (Santos X Vitória) e Campeonato Brasileiro (Fluminense X Guarani). Só não apitei a final da Sul-Americana porque havia uma equipe brasileira envolvida (Goiás X Independiente). Pela mesma razão também não apitei a final da Libertadores entre Internacional X Chivas. Das cinco finais, três eu apitei. Creio que desempenhei meu papel muito bem.

Fala um pouco sobre o teu caminho profissional depois de largar o apito.
Fui convidado por algumas grandes redes de televisão para ser comentarista de arbitragem. Sempre estive e continuo vinculado à arbitragem. Quando em janeiro a FIFA me convidou para ser Instrutor de Árbitros FIFA eu aceitei imediatamente. Este era um sonho meu. A autoridade máxima em arbitragem no Brasil, no âmbito da FIFA, sou eu. Na América Latina somos três, eu o colombiano Oscar Ruiz e o mexicano Carlos Chandia. Assim, diante deste convite, eu disse não à imprensa – rádio, televisão e jornal. Optei por ficar ligado à FIFA desempenhado a função de observar árbitros em jogos internacionais – por exemplo, no jogo entre Barcelona X Manchester, final da Liga dos Campeões da Europa, fiz um relatório e encaminhei à FIFA. Mais recentemente, em abril, o governador Tarso Genro convidou e eu aceitei ser o Coordenador Executivo do Comitê Gestor da Copa do Mundo no Rio Grande do Sul.

Como estás encarando mais este desafio?
Estou muito entusiasmado. Tenho trabalhado com muita transparência e honestidade. Digo sim quando é sim e digo não quando é não. A Copa no Brasil é do Brasil, com as nossas limitações, com as nossas desigualdades sociais, com tudo o que o país tem de bom e ruim, com toda a sua diversidade. O Brasil é um país extraordinário, tem um povo trabalhador, alegre e simpático – tudo isto tem que ser mostrado. E principalmente o nosso estado. Cansei de ouvir na Europa que o Brasil é o Rio de Janeiro. Quando tu aprofunda a conversa um pouco mais, reconhecem que existe o Nordeste e, no máximo o Pantanal. Ou seja, lá fora a Região Sul não existe. Vamos mostrar que Rio Grande do Sul é um estado extraordinário com suas diversas etnias, com uma ótima gastronomia e belíssimas paisagens. Isto precisa ser mostrado e é para isto que estamos trabalhando. O Brasil tem condições de organizar uma bela Copa do Mundo.

Tu és contra ou a favor do uso da tecnologia para auxiliar a arbitragem?
Em alguns aspectos, sou favorável ao uso da tecnologia no futebol. A bandeira eletrônica, que já existe há algum tempo, o placar eletrônico através do qual o quarto árbitro informa as substituições, o ponto eletrônico, que permite uma melhor comunicação entre árbitros e assistentes. Agora, estão propondo um chip na bola. Sou a favor, mas desde que seja inteiramente confiável. Tanto no futebol como na vida, sou pela justiça e a verdade. E nada mais justo que um lance em que a bola que transpôs a linha do gol seja consignado como gol. Estamos na era moderna. É impossível viver sem a tecnologia.

Com tantas interferências, o futebol não correria o risco de perder encantos?
Um dia destes o meu filho mais novo, o Ramirinho, me perguntou: “ô pai, como é que vocês conseguiam viver sem controle remoto?” Esta é a realidade da nossa sociedade. O futebol não pode ficar alheio à tecnologia. Alguns dizem que ela poderia tirar a magia do futebol, acabar com a discussão. Não, certamente surgirão outros motivos para discussão. Racionalmente falando, não existe nada pior do que perder uma partida de futebol por causa de um erro do árbitro. Isto não é bom. O futebol hoje é um grande negócio. O que puder contribuir para melhorar a arbitragem é bem-vindo. No entanto, faço questão de registrar que sou contra o uso das imagens de televisão como recurso para esclarecer dúvidas.

O que achas do uso de mais dois árbitros assistentes próximos às balizas?
Sou favorável porque amplia o mercado de trabalho, mas acho que vão continuar acontecendo erros, porque o erro faz parte da condição humana. No último Campeonato Carioca já aconteceu. O árbitro que estava atrás da goleira assinalou gol e a bola não entrou. Árbitros e assistentes são seres humanos e, como tal, passíveis de erro.

Não haveria também o risco destes assistentes extras minarem a autoridade do árbitro, quando, por exemplo, no momento de decidir se uma bola entrou ou não entrou?
Na busca da justiça e da verdade não há lugar para a vaidade. Temos que estar sempre em busca da justiça. Se mais pessoas puderem ajudar o árbitro, melhor. O árbitro não é o dono da verdade.

No grande negócio do futebol, os árbitros são os que menos ganham. A profissionalização da arbitragem poderia alterar este quadro?
É fundamental. Não tem cabimento manter o árbitro na condição atual, quase um semi-amador. Sempre defendi a profissionalização. Isto significa, na minha visão, proporcionar condição técnica e psicológica, acompanhamento por fisioterapeuta, preparador físico e médico. Hoje o árbitro é um solitário. Na máquina do futebol, a engrenagem mais fraca é o árbitro. O árbitro precisa ter esta consciência e saber que isto só vai mudar com a participação dele no sindicato, na associação nacional. Não tem outra saída que não seja um sindicato forte e combativo e não se faz um sindicato forte e combativo sem uma militância aguerrida. Aqui no RS temos uma estrutura boa, sólida, com sedes próprias. A participação e a conscientização da categoria são fundamentais até para poder chegar e dizer: “olha daqui em diante as coisas tem que mudar, não aceitamos mais esta situação”. Se existe um abnegado no mundo do futebol, este é o árbitro. Muitos estão no mundo do futebol por causa do dinheiro. O árbitro não. Quando tu falas quanto um árbitro ganha, as pessoas riem. Aqui no Brasil a arbitragem é honesta, transparente, correta. E muitas vezes serve de válvula de escape do dirigente incompetente, do técnico que escala mal, do jogador que erra um gol feito, do goleiro que toma um frango e de pseudos jornalistas que estão a serviço dos grandes clubes, e, diante do insucesso de suas equipes, resolvem sentar o pau no árbitro.

Qual o momento mais marcante da tua carreira?
Foi a final do Campeonato Brasileiro de 1998, entre Cruzeiro e Corinthians. Apitei o primeiro jogo no Mineirão (2 a 2). O Luciano de Almeida apitou o segundo em São Paulo e au apitei o terceiro. O Corinthians venceu por 2 a 0 e foi Campeão Brasileiro. Trabalharam comigo os assistentes José Carlos Oliveira e o Jorge Paulo de Oliveira Gomes. O trabalho da arbitragem foi considerado nota 10, pelos comentaristas de arbitragem e a imprensa esportiva em geral. Era o meu segundo ano como árbitro FIFA. Foi um momento chave na minha ascensão profissional. Depois, claro vieram as Copas do Mundo, momentos também muito significativos. E por fim, o último jogo, a final do Campeonato Brasileiro 2010, no Engenhão, Fluminense X Guarani), que igualmente me deixou muito emocionado.

Este foi um dos raros jogos em que o árbitro foi aplaudido.
Na verdade fui ovacionado pelo estádio. Não poderia ter melhor reconhecimento depois de 27 anos de carreira. Foi de arrepiar sentir o Engenhão todo me aplaudindo.

Um recado para as novas gerações
Uma coisa da qual me orgulho muito é a minha passagem pelo Sindicato. Um árbitro da FIFA ser presidente de Sindicato é algo muito raro não só no Brasil, mas no mundo todo. Eu, do início até o fim da carreira, sempre me fiz presente nas atividades e organismos representativos dos árbitros de futebol. Contribui para a arbitragem atuando dentro de campo e também fora dele, envolvido em questões que objetivavam melhorar as condições de trabalho dos árbitros. Acho importante salientar a todos os árbitros a importância da participação no movimento sindical, independente da sua posição no ranking da arbitragem e do seu posicionamento político-partidário. Numa época bem menos tolerante do que hoje, nunca abri mão dos meus princípios e mantive fidelidade à minha ideologia e nem por isto deixei de atingir o topo da arbitragem mundial, qual seja fazer parte do quadro FIFA e participar de três Copas do Mundo. Conheço vários casos de árbitros que abriram mão de suas convicções pensando que assim iriam se sobressair na arbitragem e não chegaram a lugar nenhum. Temos que agir de acordo com o que manda a nossa consciência. Em primeiro lugar, o árbitro deve ser honesto consigo mesmo dentro e fora de campo.

Agora, pra terminar, um recado para o povo russo.
Infelizmente durante minha carreira não tive a oportunidade de conhecer a Rússia. O conhecimento que tenho da nação e da história russa foi adquirido através de leituras e também das conversas que tive com o amigo Wladimir Irmatov, um grande árbitro, pessoa correta e dedicada, com quem convivi na Copa da Alemanha em 2006. Confesso que conhecer a Rússia é um sonho acalentado desde que comecei a participar da vida sindical no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, época em que li o livro do jornalista americano John Reed - Os 10 dias que abalaram o mundo -, que relata os fatos que culminaram na Revolução de 1917. Tenho uma admiração especial pelo povo russo, que deu à humanidade grandes líderes socialistas, como Lênin e Trotski, e escritores de envergadura humanística como Tolstói, Dostoievski, Gorki e Maiakovski, o poeta da revolução, entre muitos outros. No momento em que tenho oportunidade de falar à população russa através da internet, saúdo os companheiros repetindo a observação certeira de Vladimir Ilych Lenin: "a verdade é revolucionária". Não nos esqueçamos também que a vodka é russa. A todos, o meu abraço fraterno.

Fonte: Apito Bicudo

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