Reportagem: A geração do futuro está aí para as curvas

O Jornal i foi acompanhar as duas sessões práticas do curso de formação de árbitros da Associação de Futebol de Lisboa.

 O mercado de Benfica está agitado e nas imediações é preciso sofrer para encontrar um lugar para estacionar. Os sábados de manhã são sempre complicados e, neste início de 16 de Novembro, a enchente no Francisco Lázaro, estádio do Futebol Benfica, acentua as dificuldades. Quem dobra a esquina à entrada do campo demora a perceber o que se está a passar no relvado. Em frente a um dos bancos, várias dezenas de pessoas aguardam a chamada para vestir um colete numerado da Associação de Futebol de Lisboa (AFL) que os distinga. O grupo é heterogéneo e demasiado numeroso - mais de 50 - para ser apenas um grupo de amigos que trocou os lençóis pelo relvado sintético, para começar o fim-de-semana a fazer desporto. Há miúdos, há adultos, uns com chuteiras, outros com simples ténis. Eventualmente, poderia ser um curso de treinadores, mas as dúvidas dissipam-se quando, após uns primeiros minutos de aquecimento, as primeiras bandeirolas se desfraldam.
Aquele grupo à nossa frente é uma das próximas gerações da arbitragem portuguesa, num curso que começou a 5 de Novembro e termina hoje com as duas avaliações: escrita e física. Dentro de campo está também Agostinho Correia, o dirigente responsável pela formação. Acompanhado por vários monitores e árbitros, tem um papel pouco activo enquanto a sessão se desenrola. Limita--se a observar, comentar e perceber até que ponto poderão estar ali os sucessores de nomes como Duarte Gomes, Pedro Proença, João Capela e Hugo Miguel. É também ele que nos faz uma primeira apresentação ao curso e responde à primeira pergunta: afinal de contas, o que faz com que alguém queira ser árbitro? "Bom, se calhar, o que eu vou dizer não é verdade, mas o ter pouco jeito para jogar à bola." Agostinho, com 62 anos feitos nesse dia, ri-se e reconhece que, pelo menos no caso dele, foi assim em 1976. "Nunca tive jeito para isso, tenho dois tijolos nos pés. Vi um anúncio no jornal 'Record' e decidi fazer o curso. Mas, na altura, o mais importante era empinar as leis; agora é mais rápido, é diferente", explica o dirigente, que se manteve como árbitro durante "15, 16" anos e depois ainda foi observador dos escalões nacionais por mais 19.
A AFL precisa de árbitros, mas não tem capacidade para fazer publicidade em meios de grande divulgação. O método mais utilizado passa por utilizar os núcleos espalhados pelo distrito e o arranque é feito quando se atinge um número satisfatório de candidatos. Este ano, foram à volta de 60 e pagaram, quase todos, 40 euros. Os adolescentes até aos 17 anos ficam isentos do pagamento, ao abrigo de uma estratégia delineada para cativar os jovens e tornar a arbitragem mais atractiva. Qualquer interessado entre os 14 e os 32 anos pode candidatar-se, abrindo-se uma excepção para quem tenha até 36, desde que apresente um passado de atleta federado. Ainda assim, as expectativas de progressão, neste caso, são nulas, já que para chegar, por exemplo, a escalões nacionais, é preciso começar a carreira com um máximo de 26 anos. "Se calhar, metade dos que hoje estão aqui já não o conseguem", explica Agostinho Correia.
Indiferentes à matemática da progressão e às expectativas de uma carreira que agora até pode chegar ao profissionalismo, os formandos vão fazendo o seu trabalho dentro de campo. O grupo está dividido em dois e, no lado da bancada principal, é Manuel António Correia, coordenador da Comissão Técnica, quem assume as rédeas durante um exercício direccionado para a actividade de árbitro assistente. "Estica o braço!", "O braço é paralelo à perna!" e "Encosta a bandeira ao corpo!" são alguns dos conselhos mais repetidos de uma forma enérgica que, mais tarde ou mais cedo, se percebe ser a sua forma de estar.
Um a um, os candidatos são postos à prova, enquanto os restantes vão observando, num misto de sorrisos com o ar desajeitado dos colegas e preocupação pela vez que está a chegar. A estreia não é fácil e obriga a cumprir religiosamente um conjunto de truques para que toda a acção seja mais harmoniosa. A bandeirola segue imprescindivelmente do lado do campo, a mudança de mão é sempre feita na zona do ventre, o dedo indicador deve estar esticado para facilitar o ângulo perfeito para assinalar o lançamento lateral, a falta, o pontapé de baliza, o canto ou o fora-de-jogo. E tudo isto tem de ser feito, repete Manuel, "com elegância e com a bandeira desfraldada". Pelo meio, segue-se um conselho para o futuro: "Em campos em que a bancada esteja mais próxima e haja espectadores agressivos com chapéus-de-chuva ou com outros objectos, podem andar do lado de dentro do campo." Percebe-se que transpira paixão pelo que faz e vai sugerindo aos candidatos que treinem em casa, em frente ao espelho. "Para mim, a arbitragem é um desporto como outro qualquer e pode ser praticada no parque", diz-nos durante o exercício, regressando rapidamente à correcção do que cada um vai fazendo. "Olha lá o que estás a fazer. Achas que a bandeira é assim? Estica lá bem o braço! Mais! Mais! É isso."
UNIDOS POR UM DESEJO A meio da manhã há um intervalo e as bolas saltam finalmente para dentro de campo. É o momento ideal para perceber até que ponto se confirma a brincadeira inicial de Agostinho Correia. Enquanto uns aproveitam para ir ver o jogo que decorre no campo de cima, outros recreiam-se com a bola. Conclusão? É, de facto, um grupo heterogéneo, onde a qualidade técnica pouco importa para estarem ali. Na verdade, só a vontade de vir a ser árbitro os une. A pausa é também o momento ideal para falarmos com dois candidatos: o mais novo e o mais velho.
Gonçalo Serzedas enverga o colete com o número 36 e percebe-se facilmente que é o mais novo. Com 14 anos feitos em Junho, fala ao i com uma timidez própria da idade. O discurso sai engasgado num primeiro momento, mas não hesita na altura de dizer que sempre quis experimentar o que era estar no lugar de árbitro - o avô, José Manuel, ter trabalhado no Conselho de Arbitragem, influenciou. Por mais estranho que possa parecer, por causa da idade, estar ali é uma vontade que já foi travada no passado: "Quando tinha 12 anos, uma senhora que trabalhava na Associação de Futebol de Lisboa falou-me do curso, mas depois eu soube que ainda não podia."
Antes, o limite inferior era de 16, mas a redução para 14 permitiu a Gonçalo realizar o desejo. O irmão mais velho rejeitou o desafio, mas ele não pensou duas vezes. Ser árbitro não é uma paixão partilhada pelos amigos da sua idade, mais preocupados em jogar futebol do que em apitá-lo dentro de campo, e por isso enfrenta algumas reacções mais complicadas. "Gozar? Não, não é bem gozar, mas põem em causa a minha vontade. 'Queres mesmo ser árbitro? É uma granda treta!', dizem-me." Imune a essas opiniões, o adolescente que até jogou no São Pedro (Ericeira) tem um objectivo bem definido: "Gostava de ser árbitro internacional."
O sonho de Gonçalo não está ao alcance de Hélder Alves, o "veterano" do curso, com 36 anos. O ex-jogador do Loures nas camadas jovens também passou pelos seniores do Pinheiro de Loures e pelo futsal, e é graças a essa experiência que pôde recorrer à alínea excepcional. "O desporto é a minha vida e também tenho treinado algumas equipas, apesar de não ter o curso de treinador. Até agora, não tinha conseguido conciliar as duas coisas, mas um colega falou-me deste curso e da possibilidade de entrar mesmo com esta idade", começa por explicar.
O corte de cabelo, a voz e a postura que apresenta durante os exercícios e enquanto fala connosco dão indícios do que faz na vida. Hélder é militar da GNR e a impossibilidade de progredir na arbitragem não o afecta: "O objectivo é, principalmente, passar de crítico a conhecedor", confessa, criticando a falta de conhecimento generalizado que se estende a jogadores e treinadores. O lado profissional pode ser uma mais-valia nesta aventura que tem pontos de comparação: "É preciso saber impor autoridade, saber falar e aplicar as leis. A comunicação é sempre importante." E depois, quem sabe, ser também "um modelo para os mais novos".
CHEGAR É FÁCIL, MANTER NÃO Atrair interessados para o curso de árbitros não é o mais difícil. No início, os grupos costumam ser numerosos e o grande problema está em conseguir com que se mantenham com o passar das aulas. "Há muitas desistências. Se passado uns dias não gostam, vão-se embora. Temos alguma dificuldade nessa manutenção. E, mesmo depois de acabarem o curso, continua a ser difícil. É preciso criar o bichinho, é preciso incentivar", garante Agostinho Correia. O coordenador fala por experiência própria, lembrando o passado dos filhos que, com 14 anos e sem carta de condução, moravam em Palmela e tinham jogos em Torres Vedras.
O modelo do curso sofreu alterações com o novo plano nacional de formação e pretende dar uma bagagem mais diversificada. Dessa forma, as unidades curriculares incluem História das Competições, Função e Estatuto do Árbitro, Introdução às Ciências do Comportamento, Técnicas de Arbitragem, Noções Básicas de Saúde, Alimentação e Nutrição, Legislação e Segurança e Metodologia do Treino. A alteração faz também com que a entrada em competição seja mais gradual. "Antigamente eram mandados logo para as feras. O objectivo, agora, é fazer com que sejam mais acompanhados durante o estágio, nas presenças nos núcleos e nos centros de treino. Desta forma há mais controlo e também se torna mais apelativo", explica Agostinho Correia. "É um plano ambicioso que visa a profissionalização", completa Manuel António Correia.
Os responsáveis pela arbitragem esperam que o novo plano possa estancar as dificuldades que têm vivido. Recentemente, vários árbitros foram afastados por faltarem a jogos e treinos, e as causas são um pouco transversais a tudo o que se passa em Portugal, na opinião de Agostinho Correia: "Há uns que deixam de ter hipóteses de subir de escalão e abandonam. E a conjuntura económica também é difícil." Apesar disso, a AFL é das que paga melhor e os valores por jogo podem ir desde os 14 euros, nos escalões mais jovens, até aos 45, em encontros do Pró--Nacional (divisão mais alta a nível sénior distrital). Carlos Esteves, presidente do Conselho de Arbitragem, conta ao i que são pagos a árbitros cerca de 70 mil euros por mês, entre os prémios de jogo, os quilómetros das deslocações e os subsídios de refeição, quando existem.
DUAS SEMANAS DEPOIS... O curso parece estar a ser um sucesso. O Futebol Benfica volta a acolher uma sessão prática e o grupo mantém-se inalterado. Não falta ninguém e uma desatenção até faz com que os dois últimos a chegar comecem a aula sem o colete. A insistência já não é tanto nas tarefas do árbitro assistente e foca-se também nos desafios do penálti e da capacidade de lidar com jogadores problemáticos. Aí, são os próprios futuros árbitros a encarnarem esse papel durante uma peladinha em que acontece tudo, desde simulações a tentativas de intimidação. Os lances são interrompidos com frequência para debater o que deve ser feito, enquanto a linha lateral tem seis ou sete candidatos a fazerem de assistentes. "Há ali um que marca sempre para o lado contrário", desabafa um dos "jogadores", entre risos.
O grupo está mais solto e confiante, e dá razão ao que Manuel António Correia nos tinha dito duas semanas antes: "À segunda aula começa-se logo a perceber quem terá jeito." Esse reencontro é também o momento ideal para esclarecer o alcance das duas tiradas que nos ficaram na mente durante esses dias: o treinar em frente até ao espelho e a prática num parque.

"A arbitragem tem de ser vista como uma qualquer modalidade e pode ser praticada num parque aberto", repete-nos. Acima de tudo, lembra que não é preciso que haja um jogo para haver arbitragem e que as decisões não são obrigatórias durante o treino, apenas o processo de as tomar. "O que se pode treinar? A sinalética, a forma de usar a bandeirola, a movimentação em conjunto com o outro árbitro, a corrida de costas, a movimentação lateralizada..." enumera. A questão do espelho baseia-se no mesmo conceito, e não numa ideia de vaidade. "Quando se pratica em frente ao espelho, conseguimos ver como estamos a fazer e como podemos melhorar. A repetição leva à perfeição e em frente ao espelho temos essa possibilidade. Mas também pode ser testado em frente à mulher ou à namorada. Pode ser partilhado com a família."

Fonte: i

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