Opinião - Duarte Gomes - Uma crónica de revolta com vinte perguntas para homens incoerentes, irrazoáveis e insensatos

Duarte Gomes
Ex-árbitro e actual comentador de arbitragem
Vamos lá falar do assunto do dia...

A Liga ainda agora começou, mas a sede de contestar decisões, de lançar suspeitas e de criar teorias de conspiração era tanta que bastaram dois momentos de um jogo de futebol – repito, dois momentos de um jogo de futebol – para que a atualidade nacional esquecesse os danos irreparáveis dos incêndios, as interrogações sobre o próximo orçamento de estado e os perigos atuais da exposição aos Raios UV... e focasse todos os holofotes nos dois penáltis assinalados no Estádio Nacional.

É como se as pessoas, algumas pessoas (onde se incluem adeptos e dirigentes, comentadores e jornalistas), achassem que toda uma nação devia parar, tomar uma injecão de esquecimento temporário e ajoelhar-se, de imediato, perante as sequelas irreversíveis, catastróficas e quiçá persecutórias que aconteceram no jogo do passado domingo.

Não é novidade, não surpreende nem apanha ninguém desprevenido... mas que continua a ser meio estranho, continua. 

Bem, mas nem oito nem oitenta.

Não banalizemos demasiado o assunto do dia/semana/mês: todos sabemos que o futebol é uma indústria importante, que cria postos de trabalho, mexe com a economia e com muitas outras vertentes da sociedade. Verdade. 

E todos sabemos que, até por isso, deve ser bem cuidado e protegido. Deve ser dirigido, em todas as vertentes, por pessoas qualificadas e competentes. Por pessoas dedicadas e honestas. Do técnico de equipamentos ao Presidente da SAD. Dos árbitros aos seus dirigentes.
Talvez por isso – e não me levem a mal a sinceridade – de cada vez que se insinua que eventuais erros de arbitragem são responsáveis pela destruição da verdade desportiva, como se essa fosse a única variável que perturba a justiça de um resultado ou de um campeonato... não consigo silenciar a minha revolta. Moderadamente. Serenamente, claro. 

Mas não consigo.

E não consigo porque, sem nunca por em causa a importância das decisões dos árbitros no rumo de uma partida, não acho normal que um ser humano razoável, coerente e sensato não consiga ter a honestidade intelectual de assumir, para si e para os outros, que esses erros não são nem maiores nem menores do que aqueles que, no mesmo ambiente competitivo, são cometidos por jogadores e treinadores.

Quando vejo adeptos indignados, dirigentes alterados e outros proeminentes cidadãos a ironizar, no alto da sua pseudo-autoridade moral, sobre alegados erros de arbitragem como se um drama nacional se tratasse, percebo que este fenómeno (o do estado de embriaguez profundo que a bola causa), é terreno fértil para sociólogos, psicólogos e psiquiatras. 

Como eles se deliciariam a estudar o comportamento de cada uma dessas cobaias ao pormenor.

Ao contrário desses (que estão em franca maioria), eu sou um daqueles seres muito estranhos que canaliza as suas preocupações para bem longe do que se passa nos relvados. Vá se lá saber...

A mim não me choca o vermelho por exibir, o falhanço de baliza aberta ou o frango em remate fácil. Não me choca a má abordagem tática, a substituição errada ou a contratação milionária que se revela um flop. 
Isso faz parte. São variáveis de quem tem que tomar decisões. Decisões bem intencionadas, instantâneas, momentâneas, que simplesmente podem ou não correr bem.

O que me choca mesmo é ver o desporto que amo confundir-se diariamente com crime. Com imoralidade e comportamentos desviantes.

O que me choca mesmo é ler na mesma frase as palavras "Futebol, PJ e DIAP".

O que me choca é o futebol-desrespeito, o futebol-insinuação, o futebol-insulto. 

Choca-me o futebol-dúvida. Aquele que está em permanente interrogação:
- Será que tudo o que se ouve e lê nas entrelinhas é verdade? Será que são só indícios sem fundamento ou o pior ainda está para vir? Será que é normal haver tantas invasões, buscas e detenções? Será que houve viciação de resultados, árbitros contactados, jogadores subornados, jogos combinados? Será que houve comportamentos duvidosos, atitudes incorrectas, promiscuidade inapropriada? Será que houve práticas ilícitas, falta de ética e atitudes condenáveis?
Eu sei, eu sei. Sou estúpido.

Porque deve ser uma estupidez preocupar-me com minudências como estas, quando todos parecem focar, apenas e só, naquilo que verdadeiramente importa, neste momento, em Portugal: os dois penáltis do Jamor. 

Se sou o único que vai em sentido contrário na auto-estrada, devo estar errado. Rendo-me. 

Vamos lá falar, sucintamente, desses lances:
Oito ex-árbitros de futebol, agora comentadores, tiveram (se calhar pela primeira vez em situação de enorme subjectividade), opinião unânime: a de aceitar como boas as duas decisões.
Se somarmos a esses oito "técnicos" os dois juízes que estiveram no olho do furacão, estamos a falar de dez "especialistas", dez (!!) com a mesma opinião.
Dez que têm milhares de quilómetros nas pernas, centenas de lances semelhantes e muitas dezenas de ações de formação onde situações como aquelas foram vistas, revistas e analisadas ao pormenor. Até à exaustão. Uma, duas, cem vezes.

Para parte do país, do país que provavelmente nunca leu as leis de jogo ou calçou um par de botas... a opinião dessas dez pessoas está errada. Não tem fundamento ou legitimidade. Porquê?
Porque a verdade desses não coincide com a sua. Está bem então.
A indignação (não geral, mas de uma fação) é tão latente que os próprios nem se apercebem a forma como, através dela, expõem as suas dores mais pessoais.

Amanhã ou num futuro próximo (e escrevam, vai acontecer) outra qualquer fação do país terá idêntica posição, se decisão semelhante servir não o seu mas o interesse momentâneo de um rival. Porque, regra geral, a indignação no futebol não é uma questão de princípio. É uma questão de camisola.

Tecnicamente os lances são, obviamente, muito discutíveis ou não estivéssemos a falar do pior bico de obra que as regras alguma vez puseram nas mãos dos árbitros: as mãos e braços na bola. 
É como se o legislador, com uma perversidade inenarrável, lhes dissesse: “Agora vá, tomem lá este embrulho e desenrasquem-se”. 
Dicas: deve haver algum tipo movimento deliberado da mão ou do braço (não necessariamente intenção de jogar a bola mas mexer os braços de propósito), onde exista volumetria injustificada (aquela que entendam ser desnecessária para o movimento defensivo do defesa naquela circunstância).
Depois, se houver causa/efeito (corte de trajetória), fará mais sentido punir... mas se o remate for muito na queima (proximidade máxima entre quem remata e quem defende), já não fará, portanto... peguem lá nisto tudo e naqueles infindáveis centésimos de segundo que dispõem (ou nos frames em slow motion que vos damos), bem... decidam e aguentem".
Nota - Queria tanto ver-vos lá dentro, de apito na mão, para que sentissem por instantes aquele arrepio angustiante de quem sabe que, qualquer decisão que tome, será sempre escrutinada, empolada, criticada, dramatizada...

De regresso ao Jamor: dois braços comprovadamente fora do corpo (instintivo, reativo, se calhar sim, mas cuja abertura não pareceu justificar-se face ao movimento defensivo).... os dois, portanto, com alguma volumetria (braços fora da zona do corpo, que não protegiam o rosto ou corpo do impacto da bola)... duas bolas claramente interceptadas na sua trajetória pela ação daqueles... dois lances logo vistos e contestados pelas equipas opostas como faltosos... e que acabaram por ter decisões iguais. 

Bolas! Será assim tão criticável? Há ou não há fundamento técnico para que a interpretação fosse a de punir ambos do mesmo modo? Será assim tão lesa-futebol? Têm noção de quantos lances destes existem, no país, em todas as jornadas de todos os campeonatos? Estaria parte do país tão indignada se fosse assinalado o primeiro penálti e não tivesse acontecido o segundo? Ou foi este que incomodou? Será que tanta indignação não terá a ver com a consequência e não com a causa? Não estará relacionada com a coincidência desportiva do segundo lance ter ocorrido nos instantes finais da partida, acabando por dar a vitória a uma das equipas? E se estivesse 5-0? Haveria tanto "especialista" incomodado, com a mesma análise da mesma jogada?

E se o segundo penálti fosse na área oposta, o país moralista que agora contesta... estaria assim tão ofendido?
Haja paciência para tanta lamúria. 
Quantas dezenas de situações como estas, de análise terrível e bem dúbia, já beneficiaram as equipas dos agora indignados? E aí, quantas vezes se ouviu a sua voz, dizendo que foram vergonhosamente beneficiados?
É o tal ping-pong verbal, que tantos criticam mas que quase todos jogam. E jogam de forma tão inconscientemente parcial, que nem os próprios se apercebem.

Deixem lá os árbitros em paz, por favor. Não batam mais no ceguinho. 
Sabemos que nem todos são craques, nem todos têm a mesma competência e nem todos são experientes, maduros. Nem todos têm sensibilidade máxima para a função. Verdade. Mas essas são vicissitudes também comuns em jogadores e treinadores. 
Mas por favor, em lances como aqueles, de fronteira, de zona limite, cinzentos... permitam-lhes a liberdade de interpretar em função do que vêem e sentem. Do que intuem. Do que conhecem do jogo. Têm esse direito. 

Não peçam só paz quando essa vos convém. Quando o resultado vos favorece e deixa feliz. 

Peçam-na também quando estiverem revoltados, momentaneamente irritados, alterados. Aí sim, terá valor. 

Todo o valor.

Autor: Duarte Gomes
Fonte: Expresso

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